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terça-feira, 13 de julho de 2010

I. A grande divisão
Os cientistas sociais que pesquisam as diversas dimensões dos fenômenos de saúde e doença ressaltam as dificuldades de se trabalhar num universo cuja hegemonia é biomédica. As dificuldades surgiriam porque o conhecimento da natureza é considerado mais objetivo, mais verdadeiro, mais útil e mais eficaz. A natureza seria mais real que cultura – natureza é objetiva, “cultura” ou “sociedade” não. Donde a maior legitimidade e hegemonia da biomedicina. Os cientistas sociais, que se voltam ao estudo da "cultura" e da "sociedade", são mais subjetivos, menos eficazes, menos próximos da realidade e não têm a mesma legitimidade. As críticas dos cientistas sociais, freqüentemente, se dirigem aos efeitos dessa grande divisão natureza-cultura – concentrando-se em demonstrar a preponderância do saber biomédico e a arrogância de um determinado tipo de conhecimento que se arvora universal. Estamos imbricados numa grande divisão natureza-cultura que nos leva, como vem assinalando autores como Bruno Latour, à conclusão de uma natureza universal entendida e dominada – por meio da ciência –, e serve como justificativa para equiparar pensamento moderno, ciência, biomedicina, e verdade universal.
Ao compartilhar as convenções que instituem a própria biomedicina como ciência, aceitamos também a partilha estabelecida e os limites que impõe: não podemos dar explicações sobre a ciência e a objetividade dos fatos; os fatos da biomedicina são reais, objetivos, duros, técnicos, eternos, o que os distanciam dos interesses humanos e sociais. A materialidade e a objetividade escapam dos limites da sociedade e fogem da capacidade de compreensão dos cientistas sociais. Essa partilha pode ser acompanhada em diversas dissertações e teses produzidas na área de saúde que inventariam (no sentido de arrolar, descrever minuciosamente), por exemplo, as dimensões sociais da tuberculose ou da aids numa determinada região ou a adesão a terapias, sempre se perguntando sobre “comportamentos”, “determinantes sociais”, “padrões culturais”, “representações sociais”. Trabalhos que quase) nunca se detêm em perguntar o que é a tuberculose ou a aids para os próprios interlocutores. Pergunta irrelevante, pois considerada óbvia e já dada pela biomedicina. Amiúde discorre-se sobre o aspecto físico-biológico da enfermidade, sua sintomatologia, em réplicas imperfeitas do discurso biomédico. Aqui, tudo se pode questionar, debater ou criticar, a não ser a acepção da própria enfermidade que já foi antecipadamente definida, caracterizada e conceituada pela biomedicina – que não é objeto de análise. De forma que se interrompem as indagações justamente onde elas poderiam ter se iniciado.
As doenças são físico-biológicas e, cada sociedade, cada cultura, elabora leituras sócio-culturais do dado biológico. Essa frase, tanta vezes repetidas por cientistas sociais que trabalham no campo da saúde revela muito de nossa imersão imaginativa no universo da grande divisão. Enseja diretamente a distinção natureza (biológica) e suas leituras (sociais ou culturais), e as divisões consubstanciais entre fatos e valores, mundo e representações. A “materialidade da doença”, a “objetividade dos corpos”, a “definição das enfermidades” ficariam, então, sob a responsabilidade da biomedicina. Essa partilha coloca as ciências sociais como dependentes e subservientes de um saber que não se pode interrogar, cabendo-se apenas buscar as dimensões sociais ou culturais de algo antecipadamente definido.
Muitas vezes essa busca de dimensões sociais ou formas culturais específicas reveste-se de caráter prioritariamente pragmático: saber como determinada “população” pensa sobre tal doença facilitaria a adesão a tais terapêuticas e aumentaria a eficácia de tais tratamentos. Nessa situação, extremamente habitual para quem trabalha na área, envolta numa áurea humanista as ciências sociais – voltadas à compreensão de saúde, doença e corpo – findam subsidiárias à mesma biomedicina que criticam. A grande divisão cultura-natureza é, nesse sentido, perniciosa, pois já sabemos de antemão o que é doença e saúde para nossos interlocutores. O que precisamos, vale insistir, é catalogar as “diferenças culturais” e as diferentes “leituras sociais”, sempre as cotejando com as definições biomédicas.

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